Proselitismo Religioso

12/01/2023 11:06

Proselitismo Religioso

Um estudo comparativo de julgados dos Tribunais Regionais Federais

 

O presente trabalho irá analisar dois julgados provenientes do Tribunal Regional Federal da 2ª Região e do Tribunal Regional Federal da 3ª Região. O primeiro se trata de um

 

(...) Agravo de Instrumento interposto em face de decisão que indeferiu o pedido de tutela de urgência, em sede de Ação Civil Pública, objetivando a quebra de sigilo dos dados cadastrais e dos usuários responsáveis pela publicação e divulgação de vídeos com conteúdo referente ás religiões de matriz africana e a retirada do material da internet.

 

Nota-se que a referida ação envolve a Lei do Marco Civil da Internet, particularidade que não será analisada nesta exposição, tendo em vista que extrapola o tema aqui abordado. O objetivo central, portanto, é observar como os Tribunais tem se posicionado diante do confronto entre a liberdade religiosa e a liberdade de expressão. “Em síntese, investigar, em maior profundidade, em que medida o proselitismo religioso é constitucionalmente permitido e em quais hipóteses desborda das balizas da liberdade de expressão religiosa.”

 

Nesse sentido, o relator do acórdão esclarece que o proselitismo religioso “objetiva angariar novos fiéis ou direcionar o comportamento dos adeptos à religião”, e é posto em prática através de três etapas. Para explicar as referidas fases, o Desembargador baseou-se em um precedente do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Ministro Edson Fachin.

 

Segundo dispõe o agravo,

 

a investigação deve incidir nos “juízos de desigualação”, fases atribuídas ao proceder inerente ao proselitismo (...), compreendendo três etapas: a primeira, em que explicita a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos, de caráter cognitivo; a segunda, em que se assenta suposta relação de superioridade entre eles, de viés valorativo; e a terceira, em que o agente legitima dominação exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior.

 

Nesse ponto, cabe analisar o acórdão supracitado em contraponto com o proveniente do TRF3, o qual versa sobre uma ação civil pública, interposta pelo Ministério Público Federal, juntamente com duas associações civis, objetivando direito de resposta coletivo às entidades afro-brasileiras diante de ofensas perpetradas em programas religiosos transmitidos pelas emissoras de televisão.

 

Conforme referido, é importante explorar os julgados em conjunto, pois, apesar da ação tanto da emissora, quanto o canal do Youtube, serem muito parecidas, proferindo que as entidades da religião de matriz africana são demônios, entre outros termos, a resposta do Poder Judiciário não foi a mesma.

 

Isso porque, enquanto o TRF3 atendeu ao pedido da parte autora, “para condenar as rés a produzir, cada uma delas, 4 (quatro) programas de televisão, com duração mínima de uma hora, cada, a título de DIREITO DE RESPOSTA às religiões de origem africana, (…)”, o TRF2 negou provimento ao agravo de instrumento, alegando “que não foram relatados imperativos direcionados aos adeptos das crenças afro-brasileiras com o intuito de lhes suprimir direitos fundamentais, e sim alegações quanto à dita procedência ou natureza teológica das entidades, objetivando a conversão ou a “salvação” de adeptos de outras religiões, embora mediante métodos de persuasão não razoáveis ou questionáveis, fazendo-se referência à incorporação de entes espirituais.”

 

O assunto tratado é bastante delicado, tendo em vista que coloca em confronto duas garantias fundamentais, porém os magistrados não podem furtar-se de discutir a fundo a questão, pois como mostram os dados compilados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro (CCIR), mais de 70% de 1.014 casos de ofensas, abusos e atos violentos registrados no Estado entre 2012 e 2015 são contra praticantes de religiões de matrizes africanas.

 

Para eles, há duas explicações. Por um lado o racismo e a discriminação que remontam à escravidão e que desde o Brasil colônia rotulam tais religiões pelo simples fato de serem de origem africana, e, pelo outro, a ação de movimentos neopentecostais que nos últimos anos teriam se valido de mitos e preconceitos para "demonizar" e insuflar a perseguição a umbandistas e candomblecistas.

 

O trabalho também aponta que 70% das agressões são verbais e incluem ofensas como "macumbeiro e filho do demônio", mas as manifestações também incluem pichações em muros, postagens na internet e redes sociais, além das mais graves que chegam a invasões de terreiros, furtos, quebra de símbolos sagrados, incêndios e agressões físicas.

 

Para Francisco Rivas Neto, sacerdote e fundador da Faculdade de Teologia com Ênfase em Religiões Afro-Brasileiras (FTU), baseada em São Paulo e a única reconhecida pelo Ministério da Educação como formadora de bacharéis no tema, é impossível dissociar a intolerância do preconceito contra o africano, o escravo e o negro.

 

"Os afro-brasileiros são discriminados, tratados com preconceito, para não dizer demonizados, por sermos de uma tradição africana/afrodescendente. Logo, estamos afirmando que o racismo é causa fundamental do preconceito ao candomblé e demais religiões afro-brasileiras", diz.

 

Nesse sentido, algumas reflexões necessitam ser feitas, como, por exemplo, se esse tipo de discurso não poderia indiretamente propagar a intolerância religiosa, visto que cria no imaginário popular a ideia de antagonismo entre as religiões. Como exemplo concreto de intolerância religiosa tem-se o ataque a uma menina de 11 anos, ferida por uma pedra na cabeça ao deixar um culto de candomblé na Penha, zona norte do Rio de Janeiro. “Segundo testemunhas, a menina foi atacada por evangélicos e foi vítima de intolerância religiosa. Com a pedrada, a jovem chegou a desmaiar e perder momentaneamente a memória.”. Ademais, esses discursos também podem representar uma afronta a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções, a qual dispõe:

 

2º: § 1. Ninguém será objeto de discriminação por motivos de religião ou convicções por parte de nenhum Estado, instituição, grupo de pessoas ou particulares.

 

§ 2. Aos efeitos da presente declaração, entende-se por "intolerância e discriminação baseadas na religião ou nas convicções" toda a distinção, exclusão, restrição ou preferência fundada na religião ou nas convicções e cujo fim ou efeito seja a abolição ou o fim do reconhecimento, o gozo e o exercício em igualdade dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.

 

Desse modo, é fundamental que os estudioso do direito, das mais diferentes áreas, estejam a par da discussão sobre a liberdade religiosa e o proselitismo religioso, de modo que sempre se busque garantir o respeito à dignidade da pessoa humana.

 

Para consultar as decisões dos Tribunais na íntegra:

 

https://web.trf3.jus.br/acordaos/Acordao/BuscarDocumentoGedpro/6494767

 

https://www10.trf2.jus.br/consultas/?